Existem dois tipos de usuários de transporte público: 1) os normais; 2) os que têm certeza de que são vacas.
Os episódios da semana que passou – mais uma falha no sistema elétrico da Linha 7-Rubi que paralisou trens e terminou com a depredação de equipamentos na Estação de Francisco Morato da CTPM nos convidam a algumas reflexões.
Bem, pra começo de conversa eu acharia difícil alguém discordar do fato de que alguns trechos da CPTM precisam mesmo de renovação. Só um idiota acharia que está bom.
Aí entram as filigranas do entendimento: quem não come, dorme e anda de trem como um boi consegue entender que a CPTM é um esforço do governo em aproveitar, valorizar e integrar o antigo sistema de trens à malha do Metrô. Criada em 1992, a CPTM surgiu na contramão da valorização rodoviária e reuniu, no peito e na raça, o entulho de antigas companhias ferroviárias como a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) e Ferrovia Paulista S/A (Fepasa). Quem lembra, lembra: atrasos, demoras, surfistas, marginalidade, sujeira (a via era um cinzeiro e as estações, um corrimão encardido…), falta de manutenção. Era um nojo.
Foram quatro anos até recolocar essas poucas linhas em funcionamento decente.
O sistema de trens em São Paulo era tão largado e desacreditado que as linhas, mesmo reformadas e em funcionamento novamente, registraram apenas 800 mil usuários por dia em seu primeiro ano de operação. De lá para cá, com a diminuição do tempo entre composições e o acréscimo de estações, o número de passageiros vem se multiplicando horrores, bem ao estilo paulistano. A tabela a seguir (G1), com registros de 2006 para cá, mostra bem o ônus político (para o bem e para o mal) de entrar com tudo num projeto – audacioso para os padrões brasileiros – que visa transporte para todos os 20 milhões de habitantes (capital e municípios-dormitório vizinhos), mas que ainda levará décadas para ser finalizado (se é que haverá um fim):
Operando com terminais rodoviários (municipais, intermunicipais e interestaduais, o intermodal gratuito entre CPTM e Metrô acabou mudando até a “cara” do usuário: se antes trem era coisa de gente até de outra COR (outro sol, outros hábitos, um forte traço rural), hoje as populações se misturam: a mocinha moderninha gasta 3 reais entre Paulista e Itapevi, e o caboclo de Rio Grande da Serra pode fazer um tour fotográfico-arquitetônico pela Faria Lima via Linha Amarela que ninguém mais estranha.
Interessante é que nas últimas semanas a CPTM vem anunciando largamente algumas interrupções nos fins de semana para modernização da parte elétrica.
Parece que teve gente que não ligou A + B. Dias antes do vandalismo de uns poucos, o Secretário dos Transportes Jurandir Fernandes deu uma entrevista à Rádio Estadão ESPN (pena não consegui localizar) e explicou que no presente momento está havendo um pesado investimento, incuindo obviamente a parte elétrica: em algumas linhas da CPTM ainda vigora o sistema elétrico antigo, que abrange todo o sistema da linha. Resultado: se cai a energia em um ponto, toda a linha paralisa. O que se está fazendo agora é colocar a energia por pontos, e eu lembro que ele até comparou com os disjuntores em residências mais modernas: cai a energia na cozinha, mas não no corredor.
A CTPM está complicada? Está. É por desleixo do governo? Aí já não posso afirmar. Ao longo desses anos foi-se fazendo o possível, dentro de um planejamento que não pode olhar só para um modal de transporte. E pior, com o dinheiro que se tinha. Acho até que foi razoavelmente bem. O intervalo entre trens chega a seis minutos (porque é um trem, e não um metrô), superando até sistemas ferroviários de outros estados entregues à iniciativa privada.
São Paulo combina alguns complicadores que nenhuma outra cidade brasileira tem: 1) a quantidade de gente que não para de chegar (250 mil almas por ano); 2) a quantidade de gente que mora aqui e passa, em algum momento, a usufruir com mais conforto das facilidades crescentes de transporte; 3) a série de municípios vizinhos sem vida própria, servindo apenas de dormitório: a vida de seus habitantes é toda na capital; 4) o fenômeno Metrô, que não tirou os carros das ruas, pelo contrário: as pessoas que passaram a usar Metrô vieram dos ônibus, um transporte péssimo por natureza devido às longas distâncias; menos ônibus nas ruas, os carros se sentiram à vontade para sair mais das garagens.
Não é fácil equacionar esta jaca. Se tudo fosse cor-de-rosa como na cabeça de urbanistas…
Só sei de uma coisa: os passageiros da CTPM têm duas alternativas: ou começam a se inteirar das coisas e têm um pouco de paciência (inclusive no Metrô, que anda impossível, por exemplo, na Consolação, mas isso é transitório), ou então quebra tudo de uma vez, o que será pior.
O secretário Jurandir Fernandes vê algo de político no acontecido na Estação de Francisco Morato. Faz sentido, concordo em parte com ele.
Mas prefiro pensar que o povo-povo-mesmo – aquela parcela não boi – espera para breve que tudo volte à rotina: aquela boa rotina que fez e faz São Paulo ser atração de vida para milhões de brasileiros e estrangeiros.