Quando eu tinha uns 11 anos, já morando no Rio, recebemos a visitinha de um amigo de vovô, o Brodi. Joseph Brodi. Brodi tinha tomado duas atitudes radicais em sua vida: a primeira foi quando veio parar no Brasil, antes da Segunda Guerra. E a segunda foi se deslocar – sei lá por quê – da ainda garoenta São Paulo para aquele verdadeiro drama mexicano que estava a Boca do Mato em pleno verão.
Eu não tinha entendimento sobre a adaptabilidade humana. Achei muito esquisito Brodi chegar lá em casa de paletó, com a camisa alvíssima (bordada com suas iniciais) abotoada na gola e nos punhos, no meio daquela canícula. Isso até minha mãe lhe oferecer um suco geladinho. De caju. Aí foi o fim da picada! Como é que podia um camarada com aquela cara de gueto, com aquela roupa e com aquele sotaque aceitar complacentemente algo tão tropical?, pensei. Por baixo por baixo deveriam lhe servir um conhaque. Um vermute. Um rum. Mas Brodi, para meu espanto pré-adolescente, tomou o suco de caju com a maior naturalidade do mundo.
Como falamos em gringos esta semana, isso me remete às memórias de Ruth Cardoso, recentemente evocadas, sobre quando teve a idéia de fazer uma sopa de mandioquinha (batata-baroa) para Jean-Paul Sartre, sob o olhar horrorizado e receoso de madam de Beauvoir, a leoa-de-chácara do estômago filosofal sartriano, afeito a embutidos que nem Deus sabia como era feitos.
Isso aconteceu por ocasião da notabilíssima e inolvidável “Conferência de Araraquara”, em 4 de novembro de 1960, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, hoje integrada à Unesp. O convite foi feito pelo filósofo Fausto Castilho, então docente da FFCL local. O filósofo e Simone de Beauvoir tinham vindo ao Brasil sob a desculpa de participar do I Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária no Recife, mas no duro estavam mesmo era fugindo de perseguições políticas por causa da oposição ao colonialismo francês na Argélia. Por isso, zanzaram por aqui durante dois meses e meio.
O evento foi concorridíssimo. Estavam lá não só Ruth e Fernando Henrique, Bento Prado Jr., Jorge Nagle, Miriam e Dante Moreira Leite, Antonio Candido e Gilda Mello e Souza, Nilo Scalzo, Michel Debrun, José Celso Martinez Corrêa, Dante Tringalli e José Aluysio Reis de Andrade, como a metade da população araraquarense, mais a das adjacências. A outra metade estava no estádio assistindo ao jogo da Ferroviária contra o Santos.
O cicerone Jorge Amado e Simone de Beauvoir, que de existencialistas não tinham nada, estavam torcendo o nariz praquela viagem interminável de Kombi, desde São Paulo. Isso porque todos pernoitaram na fazenda dos Mesquita (d’O Estado de S. Paulo), em Louveira. Ambos achavam muito mixuruca aquele convite pra dar palestra no fim do mundo, além de tudo numa faculdade recém-criada. Simone não estava nem aí para a intelectualidade brasileira. Queria mesmo, junto com Sartre, pregar a revolução cubana pros nativos e se mandar de volta pra Paris.
Antes da palestra, Sartre compareceu a um encontro com estudantes e trabalhadores no Teatro Municipal da cidade. Foi lá que Fernando Henrique teve a iniciativa de traduzir a coisa junto com Antonio Cândido, o que, obviamente, nunca foi mal-interpretado até que ele assumisse seu segundo mandato.
Ninguém ouviu praticamente nada sobre o existencialismo: Sartre mandou ver na propaganda cubana e na questão argelina, para uma platéia composta inxcrusive de camponeses, que depois disso tudo devem ter virado existencialistas convictos.
O filósofo, porém, foi aclamadíssimo em ambos os eventos, e mostrou-se impressionado com o entusiasmo do povo nas ruas de Araraquara, incrementado com fogos de artifício, bandeiras e cerveja. Não tardaram, porém, a lhe explicar a diferença entre o ser e o nada: o Ferroviário tinha batido o Santos de Pelé por 4 X 0.
O fato é que Sartre e Beauvoir, amparados por um determinismo empedernido, não curtiram a sopa de mandioquinha. Passaram batido pelas delícias de meter os dentes numa manga, de afundar os beiços num caju, de comer uma inocente banana sentados num parapeito à beira-mar, de pés descalços, espreguiçando seus calos na brisa. Nunca colocaram um shortinho. Uma sandalinha de dedo.
Tirar aquele turbante da cabeça, então, nem pensar! Vai daí Simone ficou mal-humorada o tempo todo. Nem sei se adiantaria Emilinha Borba aparecer em pessoa pra ela. Metade do Brasil não entende a Chiquita Bacana… Por que ela, justo ela, iria entender?
- Ouça aqui Emilinha Borba interpretando “Chiquita Bacana”, que pra mim é a síntese do que o Brasil brasileiro acha dos outros.
- Fotos: Acima, a intelectualidade pulsante de Araraquara de acotovelando na faculdade pra ver Sartre. Sartre, prova cabal de que a dieta faz o homem. No meio (Arquivo Fundação Casa de Jorge Amado): um momento raro de felicidade para qualquer francês: Sartre e Beauvoir com Zélia Gattai e Jorge Amado, em torno da ialorixá Senhora, que iniciou o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger no candomblé. Abaixo, o casal ladeado por Jorge Amado: cara de pouquíssimos amigos num calor de rachar.