Esta foto aí eu tirei no vale do Anhangabaú, por causa da moçoila. Minha intenção era falar sobre o bundalelê que são as estátuas nesta cidade, e meu conceito foi corroborado depois, quando tentei achar o nome da bichinha. Simplesmente não consegui chegar a uma certeza, e desisti do texto.
Mas tenho muitas fotos de mendigos dublês de lúmpen, e enquadrei esta de propósito. A cidade é apinhada de mendigos. No vale do Anhangabaú, no Arouche, nos viadutos do centro, em qualquer lugar onde o ambiente possa te dar de comer sem amolar. Pena que não tenho foto do viaduto do fim da Paulista – aquele que o padre Lancelotti achou um absurdo a Prefeitura emparedar. Na certa, o melhor dos mundos de Lancelotti é ver cada vez mais gente vivendo na rua, de preferência assaltando, bebendo até cair e cheirando cola. E São Paulo tem esse pepino nas mãos. É um grande ímã de miseráveis. Já disse por aqui que a cidade conta com abrigos. Um monte deles espalhados por aí. Aqui perto de casa também tem um, onde os mendigos só vão quando precisam comer. No resto do tempo, eles perambulam pelas imediações, dormem na rua, emporcalham toda a volta e de vez em quando dão um pocket show, acordando toda a vizinhança – Rico que o diga.
Com essa história de incrementar a mendicância, ponto de honra para o socialismo do século XXI, que acha favela superlegal mas nunca subiu em uma, a única conclusão plausível a que se pode chegar é que as correntes de esquerda querem mesmo é que o país se funheque para que o discurso possa se manter. Esse negócio de levar uma vida decente, tentar estudar apesar de nosso ensino cada vez mais ignorante, e correr atrás de emprego é coisa do capitalismo selvagem.
Como gosto de observar coisas que contam no imaginário pop, ontem vi Duas caras, de propósito, já que nesse horário tenho estado trabalhando. Mas fiz “questã” pra ver a cena do personagem do Lázaro Ramos sendo espinafrado pelo do Stenio Garcia. Irreal. Quanto mais o advogado poderoso xingava o negro favelado, mais a vítima mantinha sua educação. Está certo que os favelados da Zona Sul carioca tem verniz, e podem ter certeza que sei do que estou falando. São mais de dois séculos de simbiose intensa com a Corte, não poderia ser diferente. Mas sangue de barata, aí já é ficção.
Com o episódio do “cerco” que foi feito ao zelador aqui do prédio (que não agüentou e provocou sua demissão, anteontem), mais essa cena de novela, mais o padre dos mendigos (será que com os mendigos ele tem aquela “intimidade” que tinha com os internos da Febem?), mais aquela porcaria de deslizamento no Túnel Rebouças (provocado pela favela lá em cima), formou-se uma maçaroca na minha cabeça, na busca de soluções impossíveis nas quais ninguém está interessado, com as exceções de sempre.
Primeiramente, o ser humano é um animal hierárquico. Não tem jeito, isso está enfiado na cabeça dele pela própria estrutura social desde o tempo das cavernas. Se você é o último na cadeia alimentar, sempre arranjará alguém teoricamente abaixo de você para pisar, pra poder compensar sua vida miserável. É questão de oportunidade. Quanto mais se está abaixo na escala de formação, pior será a vingança.
Depois, as pessoas tem preconceito meeeeesmo. Por mais que esteja em voga o discurso de que todo mundo é igual, o ser humano não acha isso. Faz parte dele. Ainda mais no Brasil, onde assumimos nossa dupla personalidade desde a Colônia. Negro é legal, mas namorar minha filha, não, violão! E isso não é novela.
Terceiro: o discurso de esquerda é turvo quanto a metas sociais. Seus prosélitos geralmente vivem uma vida de classe média alta, com boas roupas, bons carros, boas casas, bons vinhos, todo dia. E desejam para as classes menos favorecidas que possam ter empregos, poder comprar pão, viver em paz e ser reconhecidos e valorizados em suas… favelas. Que possam viver em paz debaixo dos viadutos. Que possam reivindicar eternamente o direito à moradia. Que possam azeitar indefinidamente uma máquina de lamentações, para que seu tipo de governo tenha razão de existir. Grande prova disso é que pensamentos/fatias sociais envolvidas com pensamentos socialistas ou comunistas estão sempre às voltas com a fome. Não conseguem se solucionar nunca.
Sei lá, mas da minha ingenuidade de estudante eu guardei alguma coisa. Gostaria de um mundo em que todos pudessem arrumar seu cantinho. Não essa história de todo mundo na universidade, até porque ensino superior é cada vez mais pré-requisito pra um emprego de 600 paus. Fábrica, também não. Deus, que até onde sei não é taylorista ou fordista, não criou o homem pra apertar parafuso. É pouco, é emburrecedor.
E aí reside o problema: entro então numa visão autoritária de bem-estar social. Quem disse que mendigos querem tomar banho e dormir numa cama limpa todo dia? Quem disse que favelados querem morar num dois-quartos na periferia, longe da grana? Quem disse que alguns negros e alguns brancos dispensariam a enorme diferença social entre si, se justamente vivem disso? Quem disse que governos, de esquerda, de direita, de centro, querem resolver problemas sociais se (também) justamente vivem disso?
Não creio que o Brasil mude. Não creio que o padre irá para a cadeia. Não creio que a favela em cima do Rebouças tenha de sair de lá. Não creio que Germano, o zelador, se livre de moradores cruéis. Não creio que os Lázaros (não lembro o nome do personagem), os Juvenais Antena, as “comunidádji” sejam todos bonzinhos imaculados. Não creio que o Barretão vá mudar de opinião. E também não creio que a Falabella agentaria por muito tempo namorar um cara culturalmente tão diferente. Não creio em mendigos felizes tomando banho todo dia e abstêmios.
O tecido social é um mafuá. Caberia ao Estado dar uma mediada nisso. Mas, para que, se seus objetivos de médio e longo prazos são justamente o contrário?