Vila Kyrial

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“(…) um contrapeso de tanta indigência (…) É o único salão organizado, único oásis a que a gente se recolha semanalmente, livrando-se das falcatruas da vida chã”, dizia Mário de Andrade sobre a chácara da rua Domingos de Morais, 10, na Vila Mariana. De propriedade do senador José de Freitas Valle, a Vila Kyrial abrigava saraus, almoços, eventos que reuniam a nata da intelectualidade paulistana, e, apesar de sua suntuosidade, era um recanto acolhedor para jovens talentos das artes.

O casarão era programa corriqueiro para personalidades como Olívia Guedes Penteado, Mário de Andrade, Osvald de Andrade, Lasar Segall, Anita Malfatti, Victor Brecheret, Francisco Mignone, Heitor Villa-Lobos, além de políticos como Washington Luís e Osvaldo Aranha. E lá estiveram o tenor italiano Enrico Caruso, Sarah Bernhardt, Blaise Cendrars e, por que não, Coelho Neto e Olavo Bilac.

Freitas Valle, por sua vez, se desdobrava em vários: “Freval” se dedicava a fazer perfumes; “Jacques D’Avray”, um poeta (assim-assim, mas publicado); “Jean-Jean” era mâitre e gourmet, e se divertia, nos primeiros anos do século XX, misturando culinária brasileira e estrangeira. Ele chegava às raias da frivolidade, exigindo mudanças de idioma dependendo do objeto da conversa, e até o uso de trajes condizentes com a cor do convite.

Freitas Valle não era, entretanto, um dândi desocupado. Como político e mecenas, apresentou projetos de lei criando escolas operárias e agrícolas para menores, reformulou os cursos da Escola Politécnica e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz e criou a Escola Normal do Brás. Remodelou a Biblioteca Pública e militou no campo da educação em quase trinta anos de mandatos consecutivos como deputado e senador, e foi o artífice da maior parte da legislação sobre educação em São Paulo.

A cidade, nos idos de 1912, não possuía instituto de ensino superior nem de artes plásticas nem de música. Por isso, Freitas Valle criou, a partir da Vila Kyrial, bolsas para jovens talentos irem estudar na Europa. Brecheret e Villa-Lobos foram alguns deles. Anita Malfatti também, mas sua permanência em Paris por cinco anos não foi suficiente para dissipar de sua mente e de seu coração a tremenda desancada que Monteiro Lobato lhe deu em artigo no Estado de S. Paulo, sobre a exposição que ela mesmo montara em 1917, no Mappin Stores da rua Libero Badaró. Ela nunca mais esqueceria as palavras grosseiras de Lobato em “Paranóia ou mistificação: “furúnculos de cultura excessiva”, “arte anormal”, “desenhos de manicômios”, arte de “cérebros transtornados”. Ele foi, no mínimo, grosseiro, e no máximo, ignorante.

Freitas Valle faleceu em 1958. Dois anos depois, a Villa Kyrial foi vendida, e demolida em 1961. Junto com o imóvel, desapareceu uma importante parte do arquivo de textos e fotos do senador. O que temos hoje está concentrado no livro Villa Kyrial, de Márcia Camargos, cuja capa, de autoria de Moema Cavalcanti, é uma das mais bonitas que já vi. Não estranhe. A foto não faz jus a ela. Só vendo ao vivo mesmo.

  • Se interessar: Márcia Camargos, Villa Kyrial: crônica da Belle Époque paulistana (São Paulo, Senac, 2001).

9 comentários em “Vila Kyrial”

  1. Realmente lendo seus textos e “vendo”São Paulo através de seus olhos é muito bom, por um tempo cheguei até esquecer da ferida aberta.

  2. Letícia,

    Pesquisando os resultados obtidos usado-se a chave “vila kyrial”, a maioria deles descreve a Vila Kyrial como sendo localizada á r. Domingos de Moraes nº 300 e não nº 10, como o descrito em seu texto e alguns outros que encontrei.
    Afinal era no 300 ou no 10 da D.Moraes ?

  3. Importante resgate à cultura paulistana e brasileira.
    Lamentável o casarão ter perdido a guerra das grandes e gananciosas imobiliárias.
    Vila Mariana seria, com certeza, muito mais rica e importante caso a Vila Kyrial existisse. Tanto como um centro de estudos artísticos, ou mesmo como um museu.
    Viva o povo brasileiro!
    Salvem a cultura brasileira!

  4. Leticia, sou bisneta do José de Fretas Valle gosto muito e ler a respeito da minha família e estou aqui para parabeniza- la sobre o artigo.É sempre muito bom er sobre a nossa família, sobre a nossa história. E sobre o livro ele realmente é muito bom, conta com detalhes sobre a Villa Kyrial, é uma delícia folhear cada página dele, admirar cada foto.Bom mas como disse eu passei apenas para he dar os parabéns pelo artigo e dizer que admiro muito do seu trabalho.

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